O teatro para crianças como uma porta de entrada para a formação de plateia e de futuros artistas da cena

 

O primeiro contato que temos com o teatro marca nossas vidas. O sentimento de expectativa ao entrar em um espaço desconhecido é potencializado ao ouvirmos os três sinais soarem e ao vermos o abrir das cortinas, assemelhando-se à abertura de uma janela que dá para outro mundo, com grande capacidade de enfeitiçar o espectador. O encantamento se dá pela combinação de luzes e cores que se transformam, pelos movimentos dos atores em um jogo corporal e vocal de cada cena; pela troca no aqui e agora que conduz uma experiência efêmera como a própria vida.

No momento mágico de partilha entre público e atores é que surge a experiência teatral e, não por menos, minha primeira vivência no universo das artes cênicas foi responsável por impactar minha profissão como ator. Por perceber o caráter transformador dessa primeira experiência, assim como descreve Dib Carneiro Neto em “Pecinha é a Vovozinha” (2003), encontrei no teatro para crianças minha paixão, porque, além de ser o locutor de uma vivência inesquecível para muitos, também presencio o papel sensibilizador e transformador do teatro, como referenciado por Gianni Rodari (1982), semelhante a “jogar uma pedra em um lago que está calmo” que “causa uma série de ondas na superfície que, sem dúvidas, vão afetar o que encontrar e por onde passar”. Assim o teatro me transformou.

Para mim, o teatro é um tipo de condutor da nossa imaginação, da nossa fantasia; capaz de nos transportar para mundos incríveis a serem desbravados. O teatro aparece como uma possibilidade de instigar o público, estimulá-lo, e, para tanto, prevê a emancipação intelectual, prega a igualdade das inteligências entre aquele que mostra e aquele que assiste.

Embora o reconhecimento do papel ativo do público tenha influenciado o teatro nas últimas décadas, no que tange às produções voltadas para crianças, esses pensamentos aparentemente ainda não foram consolidados. O teatro para crianças, para mim, é a manifestação mais verdadeira do que o teatro deve ser. As crianças não entendem o espectador como passivo, elas afirmam o papel ativo do espectador no teatro, conectam-se com o que é apresentado e participam da proposta como se fosse uma brincadeira; veem-se como iguais aos artistas e, por isso, embarcam em qualquer viagem como seus companheiros. Trata-se de uma relação de cumplicidade e conexão; uma aventura vivenciada em conjunto, a partilha de um momento mágico.

Em uma peça para crianças, a palavra perde o posto de principal meio de comunicação; no palco, tudo comunica. É um espaço que permite a abordagem de qualquer temática sem julgamentos prévios, que será respondida com honestidade por seus espectadores; no teatro para crianças não há espaço para fingimento. São produções que requerem disciplina, engajamento, trabalho corporal e capacidade de improvisação dos atores, que devem estar prontos para reagir a qualquer estímulo; um estado de vulnerabilidade e de brincadeira constante. A prova de que o faz-de-conta continua em nossas vidas mesmo depois de adultos.

O teatro para crianças é uma produção feita por adultos para crianças, cujo elemento prioritário deve ser as crianças. Para tanto, a linguagem e as suas realidades devem orientar a construção cênica, compreendendo a pluralidade e diferenças entre elas, assim como afirma Wood: “o teatro para crianças é uma arte à parte, com qualidades que o tornam muito distinto do teatro para os adultos. Não é um teatro para adultos simplificado: tem a sua própria dinâmica e as suas próprias recompensas”.

E um dos primeiros contatos que as crianças têm com a teatralidade, muitas vezes antes mesmo de ir ao teatro pela primeira vez, é através do faz-de-conta, segundo Piaget (1978) um tipo de “jogo simbólico”, compreendido como uma interpretação de papéis tanto de seres reais quanto imaginários, inseridos em um contexto desenvolvido ao longo da brincadeira. Durante esse jogo, as temáticas abordadas são infinitas, podendo, inclusive, ser voltadas às situações de guerras e violência que, embora julgadas como problemáticas por parte dos adultos, não significam o desenvolvimento da agressividade, mas sim, da articulação na esfera simbólica. Apesar da multiplicidade de temas no faz-de-conta, um em específico se sobressai pela sua grande aplicação: a fantasia.

No teatro para crianças a fantasia e a imaginação, criam a possibilidade de construir, reconstruir e desconstruir mundos de formas infinitas, pois cada espectador preenche as lacunas do espetáculo a partir de suas vivências e suas próprias experiências, fazendo com que a encenação ganhe diversas camadas de interpretação, e o resultado dessa dinâmica reverbera tanto para quem o faz quanto para quem o assiste.

Nesse contexto, o teatro para crianças tem um papel muito importante na formação de plateia para as artes cênicas, além de contribuir para a formação de futuros artistas. Pensando nessa articulação, esse tipo de teatro é um terreno rico para que os novos artistas se experimentem no campo teatral, não que o público infantil seja um público mais fácil e que aceite qualquer coisa, muito pelo contrário, as críticas e percepções de uma criança são instantâneas durante uma apresentação teatral, elas riem, choram, falam, cantam, demonstram todas as emoções possíveis, como temor, diversão, tédio, encantamento e até repulsa, e isso faz com que o artista amplie sua escuta nessa dinâmica de encontro com o público. É quase como uma prova prática de toda uma teoria do que é estar em cena. Acredito que todos os artistas de teatro deveriam passar por essa experiência, pois o teatro para crianças é acima de tudo – teatro!

*Henrique Gonçalves é ator e bailarino, professor de teatro e produtor cultural.

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