Raízes de Glorinha

 

No início do século XVIII, as terras de João Rodrigues Prates se estendiam desde o Passo da Taquara, alcançando banhados e a Encosta da Serra, situando-se também na região da atual cidade de Glorinha. Ainda nesse período, Pedro Gonçalves Sandoval também ocupava áreas na zona do Passo da Taquara e Glorinha, evidenciando a importância estratégica e agrícola da localidade.

Com a organização administrativa do Rio Grande de São Pedro, em 1806, o governador Paulo José da Silva Gama determinou a criação do Distrito da Vila de Nossa Senhora dos Anjos, nomeando como capitão Antônio José Machado de Moraes Sarmento. Anos depois, seu filho, André Machado de Moraes Sarmento, tornou-se figura central na política da região, exercendo o cargo de juiz de paz da localidade e sendo consultado pela Câmara de Vereadores de Porto Alegre sobre a utilidade e viabilidade da subdivisão distrital.

Embora inicialmente contrário à medida, afirmando que não havia pessoas idôneas suficientes para ocupar os cargos que seriam criados, André Machado manteve influência, voltando a exercer o cargo de juiz de paz em 1857, quase três décadas depois.

Durante a primeira metade do século XIX, os caminhos e travessias da região pelos carreteiros e tropeiros representavam grandes desafios para a vida dos moradores. As estradas que cortavam o território da Aldeia dos Anjos e seus arredores exigiam pontes em diversos pontos, conhecidos como “passos”. Entre eles, destacavam-se o Passo do Barnabé, dos Ferreiros, da Taquara, o Passo Grande e o Passo da Miraguaia, todos fundamentais para a circulação de pessoas, mercadorias e tropas.

Carreteiros do século XIX

Na metade do século XIX, o processo de subdivisão administrativa consolidou a formação de três distritos na Freguesia da Aldeia dos Anjos. O 1º distrito correspondia à costa de Sapucaia, o 2º à sede, onde é o Centro de Gravataí, e o 3º abrangia a região de Glorinha, que em 1846 contava com 818 habitantes. Este distrito, embora menos populoso que o da sede, já despontava como espaço de ocupação agrícola e de relevância para a estrutura política e social da freguesia.

A agricultura, contudo, atravessou dificuldades. Embora houvesse esforços para estimular a produção de trigo, a cultura não se firmou com solidez. Em 1851, a Câmara de Porto Alegre distribuiu sementes de trigo importadas dos Estados Unidos a diversos agricultores da Aldeia, entre eles André Machado de Moraes Sarmento. A tentativa, entretanto, não trouxe os resultados esperados: segundo registros oficiais, muitos lavradores não obtiveram colheitas satisfatórias, talvez por desconhecimento de técnicas adequadas.

Tenente Coronel André Machado de Moraes Sarmento nasceu em 30 de novembro de 1796 e faleceu em 1880
Túmulo do coronel em Gravataí

Ainda assim, novas ações governamentais se seguiram, como a importação de sementes da Austrália, em 1861, e da Argélia, em 1867, além da instalação de moinhos movidos a vapor ou água para a produção de farinha.

Apesar dos incentivos, foi a mandioca que se consolidou como a base agrícola da Aldeia dos Anjos. Desde os tempos coloniais, já era cultivada pelos indígenas e, ao longo do século XIX, tornou-se a cultura dominante, responsável pela subsistência e renda local. Ainda assim, a produção agrícola em Glorinha e nos arredores mostrava vigor em meados do século. Registros de 1858 apontam que Glorinha e a região do Banhado Grande contribuíam de forma expressiva com arroz, alcançando a colheita de 220 alqueires. Nesse mesmo ano, 30 mil réstias de alho foram comercializadas, revelando a diversidade da produção local que seguia em carretas abarrotadas rumo ao mercado público de Porto Alegre, onde eram vendidas junto com melado, rapadura, banana, feijão, amendoim, milho e ervilha.

A região do Passo Grande, ligada historicamente a Glorinha, também se destacou por aspectos culturais e sociais. Em 1869, surgiram registros de curandeiros e adivinhadores que atendiam a população local e até moradores de Santo Antônio da Patrulha. Um deles, descrito em ata da Câmara patrulhense, era um homem negro que se intitulava curador de feitiços e adivinhador, cobrando valores consideráveis por seus serviços. O episódio gerou protestos de autoridades locais, que viam tais práticas como contrárias à moral e aos bons costumes, mas evidencia a presença de saberes populares, rezas e curas alternativas na vida cotidiana da comunidade.

No campo religioso, a região de Glorinha se consolidou a partir da segunda metade do século XIX. Em 1876, foi criada a capela dedicada à Nossa Senhora da Glória, e o primeiro casamento ali celebrado foi o de membros da família Sarmento e Martha. Em 1915, sob a liderança do pároco Pedro Wagner e de uma comissão de moradores, decidiu-se ampliar a capela, que passou a ser construída em alvenaria.

Já em 1952, foi finalmente criada a Paróquia de Nossa Senhora da Glória, instalada oficialmente em 31 de dezembro daquele ano pelo arcebispo Vicente Scherer. O vigário designado, Padre Wilibaldo Scholl, assumiu em 1953, servindo por três anos.

Quanto à organização territorial, em 1883, o Governo Provincial (Gravataí) fixou oficialmente os limites distritais: a sede, a região da Costa do Ipiranga (abrangendo Canoas) e o terceiro distrito correspondente ao território do Passo Grande, hoje Glorinha. Já em 1912, Canoas foi elevada a quarto distrito e, em 1958, com novas divisões distritais, consolidou-se a formação administrativa e geográfica que deu origem à futura emancipação de Glorinha, em 1988.

Assim, do século XVIII ao XX, Glorinha formou um espaço de intensa atividade agrícola, cultural e religiosa. De um lado, a produção diversificada mandioca, arroz, alho, milho, feijão e trigo; de outro, a vida comunitária marcada pela fé, pela construção de suas capelas e pelo protagonismo de famílias como os Sarmento. O distrito consolidou sua identidade própria, culminando na criação da Paróquia da Glória e no fortalecimento de sua posição dentro do Vale do Gravataí, até alcançar o processo de emancipação.

*Amon da Costa é historiador e professor, além de escritor e palestrante.

 

 

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